A pressão dos leitores é grande para que eu comente a entrevista que
Dilma Rousseff concedeu a Jô Soares. Há um enorme inconformismo. No
sábado, botei o pé na rua e comecei a ser abordado por conhecidos: "Você
viu aquilo? Você viu que absurdo?". Vamos lá. Vamos botar as coisas nos
seus justos termos.
Jô faz um talk show, não um programa jornalístico. Assim, seu
compromisso com suas afinidades eletivas, com seu gosto pessoal, com
suas idiossincrasias pode ser maior do que com a precisão. É evidente
que ele tinha um roteiro, pautado por uma leitura muito pessoal da
realidade, e decidiu segui-lo. Em muitos momentos, a sua disposição de
sair em defesa de Dilma se mostrou superior à dela própria em se defender.
Ele foi ainda muito pouco lisonjeiro, para empregar palavra suave, com a
imprensa. Assim como não me arvoro em guardião da reputação de seu
programa, não vou aqui tirar ares de ofendido em nome da corporação. Ele
faça o que quiser. Eu vou me ocupar da questão objetiva. E, no caso, ela
é estritamente técnica.
Logo no início do programa, Jô classifica de "absurda" a que chamou de
"onda fora Dilma" e afirma que "na democracia, quando a pessoa é eleita,
tem de se respeitar o voto". Parece-me evidente que ele desconhece o
conteúdo da Lei 1.079, que é a que define crime de responsabilidade.
Parece evidente que ele desconhece os artigos 299 e 359, alíneas "a" e
"c", do Código Penal. Se os conhecesse, tomaria mais cuidado. Não é
preciso fazer juízo exótico nenhum para concluir que essas leis foram
atropeladas pela presidente — no primeiro caso, com os descalabros da
Petrobras; no segundo, com as pedaladas fiscais.
Mas notem: a consideração acima embute um juízo de mérito, e é claro
que, mesmo tomando conhecimento do conteúdo das leis, Jô poderia
discordar e concluir: "Não creio que tenha havido nem crime de
responsabilidade, num caso, nem crime contra as finanças públicas, no
outro". Sim. Eu sei conviver com a diferença e admito que o conjunto
rende uma boa polêmica. O que estou dizendo com isso?
Quando se faz um debate pautado pela lei, Jô Soares, não há "absurdo"
nenhum! Ninguém foi à rua dizer "eu quero porque eu quero". Ademais, a
eleição é um valor absoluto para decidir quem está eleito, mas não é um
valor absoluto para decidir se o governante fica no cargo. Ou Jô Soares
considera ilegítima a deposição de Fernando Collor? "Ah, mas naquele
caso, houve crime", talvez ele pudesse objetar. É que muita gente séria
e sensata avalia que, no caso de agora, também. Então onde está o absurdo?
Mas ainda falta
Mas isso ainda é o de menos. Nas democracias, pessoas vão às ruas com
frequência pedir a deposição de governantes. É um direito. Assim como Jô
tem o direito de ser contra. Os regimes parlamentaristas já deram a isso
a devida resposta: se um governo se torna por demais impopular, o que
costuma acarretar a perda de maioria no Congresso, ou se a crise no
partido majoritário se mostra incontornável, o gabinete cai. E, Jô,
trata-se de um governo… eleito! Houvesse alguma forma de "recall" no
presidencialismo, alguém tem dúvida de que Dilma seria deposta? Acho que
não.
Sim, pode-se dizer, o grande "recall" foi feito em 2014, com a
reeleição. Acato o argumento. O chato é que Dilma não disse que iria dar
choque de juros e de tarifas, cortar benefícios sociais, capar o
orçamento, aprofundar a recessão… Ao contrário: ela atribuiu essas
intenções a seus adversários, muito especialmente ao tucano Aécio Neves.
E esta foi uma das grandes falhas da entrevista caso se tratasse de um
programa jornalístico: é moral, é ético, é legítimo mentir de forma tão
determinada para se reeleger? O governo que a maioria dos votantes
endossou, e por margem estreita, não é esse.
Claro, o que vai acima é uma questão política, não jurídica. Por si,
confere legitimidade — sim, Jô Soares! — ao "fora Dilma", mas ainda não
confere legalidade. Atenção! Refiro-me a legalidade para depor, não para
cobrar a deposição, que isso está dado pelo Artigo 5º da Constituição,
uma cláusula pétrea. A base legal que sustenta o "Fora Dilma" está na
Lei 1.079 e nos Artigos 289 e 359, alíneas "a" e "c" do Código Penal. Jô
já entrevistou com evidente simpatia o jurista Ives Gandra da Silva
Martins, por exemplo. Talvez pudesse fazê-lo de novo.
De toda sorte, reitero, ainda que estelionato não houvesse, e há; ainda
que ilegalidades não houvesse, e estou entre que os avaliam que há,
pedir "Fora Esse" ou "Fora Aquele" faz parte do jogo democrático, muito
especialmente, Jô Soares, quando isso é feito sem o uso de aparelhos
sindicais, sem o emprego de dinheiro público, sem a mobilização da
máquina estatal e paraestatal.
Milhões de brasileiros gostariam, sem dúvida, de viver naquele país
imaginário, retratado no programa. Mas me dispenso de entrar nessas
minudências porque trato cotidianamente disso aqui. Uma coisa é certa:
quando um povo percebe que está sendo roubado por uma máquina gigantesca
e cínica; quando se dá conta de que foi engabelado por promessas
eleitorais que não serão satisfeitas; quando se sente traído pelo
discurso vitorioso nas urnas e quando, além de tudo isso, tem a
ampará-lo a Constituição e as leis, gritar "Fora presidente" — seja este
quem for — é, além de um direito, um dever.
Especialmente quando se faz isso sem agredir nem sequer uma isca dos
patrimônios público e privado. Jô é um homem inteligente, de múltiplos
talentos, de uma cultura geral rara no meio artístico. Não estou aqui
contestando a sua opinião, embora pudesse fazê-lo, claro! Estou dizendo
que ele precisa prestar mais atenção às leis, num debate que é também
jurídico, e às virtudes da democracia, num debate que é também político.
Texto publicado originalmente às 2h43 - Por Reinaldo Azevedo - Tags:
democracia, Dilma, impeachment de Dilma, Jô Soares
http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/geral/dilma-e-jo-soares-na-democracia-absurdo-e-ficar-calado-diante-dos-descalabros